CULTURA PUNITIVA SE ALASTRA

por Gaudêncio Torquato*
A cultura punitiva ganha corpo no país sob um pesado
clima de denúncias, intenso bombardeio midiático, elevação de juízes e
procuradores ao pódio de “salvadores da Pátria”, invasão de quadros que administram
a justiça no campo dos encarregados de fazer as leis e, para coroar, uma
paisagem de violência que se descortina nos centros e nas margens do
território.
Os perversos efeitos dessa radiografia se fazem ver na
quase nula credibilidade da esfera representativa, com visível extensão às
instituições políticas, no desprestígio de governantes das três esferas
federativas, e consequente desequilíbrio dos eixos de sustentação dos Três
Poderes.
A ideia de que chegou o momento de colocar meio mundo na
prisão – como forma de resgatar a base moral da política - se fortaleceu com a
expansão da delação.
De instrumento excepcional, a ser usado de maneira
pontual e voltado para desmontar redes de criminalidade, a delação tornou-se
banal, negociada aqui, ali e alhures, adotada de maneira quase indiscriminada,
abarcando um sem número de figurantes, cujo interesse em se livrar de elevadas
penas acaba obrigando-os a “arrumar” provas e, por dificuldade de consegui-las,
a esticar uma expressão acusativa que imprime o tom das mídias.
Todos os dias, telespectadores se deparam com o verbo
farto de delatores e áudios de gravações, muitas realizadas com o prévio fim de
criminalizar A, B e C.
Delatores, participantes de teias de corrupção acabam
indo para suas casas na companhia de uma tornozeleira eletrônica, reduzindo de
maneira drástica o tamanho de sua penalidade.
Os delatados são presos ou aguardam a decisão da Justiça.
A partir daí, criam-se dribles e jogadas para “administrar” as malhas de
corrupção descobertas.
O jogo obedece a essas regras: primeiro, colhem-se as
denúncias; segundo, os fios dos rolos da corrupção são desfiados e, pela tuba
de ressonância da mídia, particularmente a televisiva, chegam aos mais
distantes rincões; com a repetição diária, as mensagens ganham ares de verdade
junto à opinião pública.
Novas emoções ocorrem com áudios bombásticos. Forma-se
uma divisão entre céu, inferno e limbo.
O céu abriga os mocinhos; no inferno, queimam-se os
bandidos; e no limbo, jogam-se aqueles que ficam à espera de salvação ou
condenação.
Profissionais de investigação, buscas e apreensões se
juntam a figuras do judiciário e são entronizados na galeria dos “heróis”; na
outra banda, estão os bandidos, quase sempre reunindo políticos, empresários e
burocratas.
BOMBEIRO MEDIÁTICO
As mídias massivas (rádios, TVs e meios impressos) são
reforçadas pelas mídias especializadas (TVs do Judiciário e das casas
congressuais). Não há figura que resista a bombardeio tão intenso. Nesse
momento, outro fenômeno baliza comportamentos de atores da banda do Bem: o
narcisismo.
No Estado-Espetáculo, protagonistas da política, do mundo
do Direito e da Justiça, a par das classes artísticas, são atraídos pelo brilho
e pelas luzes das mídias. Esforçam-se para aparecer. Intencionam transmitir a
imagem de zeladores do Bem, administradores da Ordem, feitores da Justiça,
salvadores da Pátria, perfis da Honra e da Dignidade.
Com tais vestimentas, ganharão o respeito e a admiração
de grupos sociais. Visibilidade positiva é para eles o foguete de propulsão
para subir aos céus da glória. Assim, meios impressos e eletrônicos equivalem
ao espelho em que Narciso contempla sua beleza.
A política desce ao mais profundo poço da execração
pública. Seus participantes não serão respeitados nem em festas religiosas,
como a missa da padroeira, na Catedral de Aparecida do Norte, onde os poucos
políticos que ali compareceram foram apupados. Dessa forma, as instituições
políticas acabam recebendo respingos de lama e o desprezo com que imensas
parcelas da população tratam a representação parlamentar.
Não há, inclusive, preocupação de separar o joio do
trigo, a semente sadia da semente podre.
Situações embaraçosas se sucedem. Embalados no celofane
da opinião pública, os magistrados da Alta Corte são levados a adentrar o
terreno dos legisladores, interpretando a Lei Maior em aspectos que, segundo se
constata, não lhes dizem respeito. (Pergunta recorrente: se o STF pode afastar
um parlamentar, em tese poderá afastar 513 deputados e 81 senadores).
Com a decisão sobre Medidas Cautelares, na última
quarta-feira, constata-se que metade do Supremo pensa assim. Aliás, nos últimos
tempos a Corte Maior tem mais parecido uma instância criminal. A modelagem de
equilíbrio (pesos e contrapesos) entre os Poderes, arquitetada pelo barão de
Montesquieu, fenece.
NOVA TRÍADE
Uma nova Tríade do Poder se forma no país, formada pelo
Ministério Público, Judiciário e Imprensa. Em relação à imprensa, a observação
que se faz é sobre o processo de apuração de casos que chegam às redações.
Manchetes retumbantes abrem o noticiário, com imenso peso dado ao lado
acusatório e diminuto espaço à banda acusada.
Que aparece no espaço de poucas palavras negando os
fatos. O argumento de que a imprensa tem de noticiar o que lhe chega às mãos
não se sustenta sob o ideário da livre expressão com responsabilidade. A mídia
precisa apurar todos os detalhes de uma denúncia, checar fontes, analisar e
avaliar visões múltiplas e evitar a espetacularização dos acontecimentos.
O fato é que, sem apuração acurada, a imprensa acaba
“condenando”, antes da Justiça, uns e outros. Eventual correção que se faz, por
meio de duas ou três frases, não tem o peso de uma manchete bombástica e
negativa.
O elemento final da equação que explica a extensão da
cultura punitiva no país é a insegurança pública. A violência tem se expandido
em dimensão geométrica, enquanto o aparato policial não cresce. Na maior
metrópole do país, São Paulo, a criminalidade ganha índices aterradores. No Rio
de Janeiro, idem. Nas capitais do Nordeste, os assaltos se multiplicam.
Nota de pé de página: e ainda há demagogos usando
programa eleitoral para conclamar o eleitorado a votar no PT, a Salvação da
Nação.
(*) Gaudêncio Torquato, jornalista, é
professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Twitter@gaudtorquato
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