IMPROVÁVEL
RECOMEÇO
por José Maria Cavalcanti*
Com muito esforço, Ernani havia
ficado rico, mas o seu caráter irritava a esposa e filhos. Os poucos amigos que
ainda parecia ter eram artigos falsos de bijuteria. O motivo da rejeição que
sentiam era porque ele não tinha papas na língua e rasgava o verbo, mesmo
quando não tinha a menor razão. Aliás, ele era sempre o dono da razão.
Pela força da grana, era
recebido em rodas sociais e ambientes finos.
Tudo que fazia era de forma
exibida.
Quando estava no seu carrão,
fazia manobras arriscadas e desenvolvia velocidade sempre além do limite. Num
domingo ensolarado, pilotava seu Jet-sky numa área de banhistas com o único
intuito de ser visto por alguns desafetos.
Quando menos se esperava, uma
lancha o agarrou pelo meio, ao tentar retornar para as proximidades da orla.
O susto foi grande, e o
acidente inevitável.
Depois dos primeiros socorros,
foi levado em caráter de emergência, mas nem assim conseguiram livrá-lo da
cadeira de rodas, após alguns procedimentos cirúrgicos.
Ele, que já tinha uma
personalidade difícil, ficou também amargo.
Aos poucos as pessoas também
foram se afastando dele, pois seu status dependia de ele estar em atividade, o
que já não era possível pela limitação imposta pelo acidente.
A esposa logo pediu separação,
e os filhos tomaram rumo na vida, o que arrasou ainda mais com ele. Grande
parte daquilo que ele ainda tinha foi para a esposa e filhos, ficando com ele o
suficiente para ir tocando a vida.
No início do seu isolamento
numa pequena casa da periferia, conseguiu uma senhora idosa para auxiliá-lo na
limpeza da casa e para fazer suas refeições.
Enquanto pôde pagar por aquele
serviço, seu dia a dia era mais confortável, até que o dinheiro foi diminuindo,
a ponto de não ter qualquer tipo de mordomia.
A cadeira motorizada era o
utilitário mais valioso para ele. Além dos deslocamentos em casa, podia também
ir ao mercadinho e à padaria.
Com tudo o que ocorreu a ele,
nada fora suficiente para quebrar seu caráter difícil. Pouca gente se afeiçoava
a ele porque sua forma ríspida de falar feria facilmente quem tentava se
aproximar.
O que ele conseguia de atenção
era uma ou outra ação movida pelo pouco de dinheiro que ainda restava.
Com as coisas ficando cada vez
mais difíceis, começou a vender alguns itens de sua casa: quadros antigos,
vasos e outros artigos de decoração e até móveis antigos.
Substituiu tudo por artigos
usados com revestimento de fórmica.
De vez em quando, parava para
blasfemar contra a vida e contra Deus. Não entendia como sua vida tão próspera
havia terminado de forma tão miserável.
Não havia restado mais nada, e
o bem mais precioso, a família, havia ido também, não sendo lembrado nem com
uma simples visita.
Depois da venda da geladeira,
contava apenas com um pote para ter água fresca e num fogãozinho de duas bocas
esquentava a água para passar o pó do café.
Suas refeições foram reduzidas
a pão e bolachas.
Definhava a cada dia, mas
conservava seu jeitão marrento.
Certo dia, alguém bateu palmas
tão insistentemente que ele resolveu atender, o que não era seu costume.
Do outro lado do portãozinho de
madeira, vislumbrou a figura simples do homem que o importunava.
Tardou o mais que pôde para ver
se ele desistia, mas como isso não ocorreu, foi até a janela e perguntou sem
nenhuma educação o que ele queria.
- Senhor, eu corto cabelo para
quem pode me pagar qualquer coisinha, mas, se o senhor estiver sem dinheiro,
não tem problema, atendo da mesma forma.
Ernani não queria ser
importunado, mas havia reparado que seu aspecto estava horrível com o cabelo e
barba crescidos e aquela era uma oportunidade de ter uma melhor aparência.
- Entra aí! Gritou para o homem
que aguardava a decisão dele.
Ernani sabia que ali não havia
nada para ser roubado e não tinha nada a perder. Ao perceber a entrada do
homem, logo disse:
- Não tenho dinheiro para nada,
o senhor faça seu trabalho se quiser!
Aquela voz altiva e seca foi
quebrada com a docilidade daquele senhor.
- Fique tranquilo. Farei seu
cabelo e sua barba sem qualquer custo.
Por dentro sorriu satisfeito
porque ia receber um atendimento gratuito e também por perceber que estava
diante de uma pessoa aparentemente boa.
Não puxou muita conversa e nem
perguntou pelo nome do barbeiro.
O homem com todo
profissionalismo fazia sua arte com todo cuidado e atenção. Depois do cabelo,
fez a barba e concluiu o trabalho com muito esmero.
Ernani se olhou diante do
espelho e gostou do resultado final.
- Puxa, não tenho mesmo como
pagar pelo seu serviço.
- Você pode me pagar sim, basta
me deixar praticar a massagem fisioterápica que cursei há pouco tempo.
Aquelas palavras não foram bem
recebidas, mas ficou sem jeito de negar, afinal se tratava de uma pessoa que
esbanjava bondade.
Fez um gesto de aceitação à
contragosto que foi recebida com um grande sorriso pelo bom homem.
Depois de o colocar deitado no
velho colchão, começou a massagear a região torácica e em seguida passou para
as pernas.
- Aí você vai bem devagar
porque tudo ainda dói! Esbravejou.
O homem não disse nada, apenas
foi apertando com suaves toques até que percorreu toda a extensão das duas
pernas há muito paralisadas.
Como o paciente havia dormido
com a massagem, o homem terminou seu trabalho e se foi.
Duas horas depois, Ernani
acordou sobressaltado.
Olhou ao redor e não pôde ver
sua cadeira.
- Droga, que burro que sou! Sabia
que não podia confiar em ninguém! Que ladrãozinho safado!
Com as forças que tinha
adquirido nos braços, fez impulso para se erguer, e logo percebeu vida nas suas
pernas. Ele sentiu que podia comandá-las. Viu que podia firmar o corpo sobre
elas e que o sangue estava circulando como há muito não ocorria.
Aquilo o deixou numa alegria
sem par. Há muito tempo no seu rosto não se via um sorriso, e parecia que sua
vida voltara a habitar no seu corpo.
Ainda inseguro, auxiliado pelas
paredes do pequeno aposento, foi caminhando passo a passo até a saleta.
Chegando no cômodo de recepção,
achou um bilhete sobre a mesa.
” – Caro amigo, como você não
irá mais precisar da cadeira, deixei este valor para pagá-la, pois sei que este
dinheiro será importante para um novo começo.”
Ernani reparou que ali havia
mais dinheiro do que a importância que ele havia investido naquela cara
cadeira.
Ficou tão feliz e bobo ao mesmo
tempo, tentando entender tudo o que havia acontecido.
O fato é que ele estava curado.
Um milagre havia ocorrido ali, pois ele estava destinado a viver para sempre
sobre duas rodas, e aquele homem, que ele nem sabia o nome, havia feito o
trabalho de cura.
Já mais confiante, foi lá fora,
e viu que não era tão difícil.
Aos poucos foi retomando sua
vida e logo voltou a trabalhar.
Exibia agora uma alegria tão
grande de viver que impressionava a todos que o conhecia antes.
Seus negócios foram crescendo,
e ele foi se relacionando com mais pessoas.
Quando estava com condições
suficientes, resolveu se aproximar de sua esposa e filhos.
Provar que era um novo homem
não foi tarefa fácil, mas aos poucos ele reconquistou sua vida.